Poética-manifesto


Não foi uma surpresa quando me disseram que meu corpo, louco, não servia para esse mundo. A gente cedo ou tarde percebe quando o nosso corpo não serve para o que chamam de vida, a gente, antes de questionar o que é realmente vida, passa anos tendo certeza de que o próprio corpo não serve. Foi assim que eu vivi, quieta num canto do corpo, inquieta, irritada com sua selvageria.

A gente deixa de lado a imaginação como parte do que é estar vivo, a gente quebra a ponte que une o “eu” ao corpo e por isso nos sentimos isolados, mas por muito tempo achei que o corpo era isso, isolamento, prisão, limite.

As crises tiraram de mim algo fundamental: os livros. Eu não conseguia sair de casa, ok, eu não conseguia me levantar, tudo bem, mas eu não conseguia ler, eu olhava para as palavras e elas continuavam deitadas, inertes, sozinhas como eu. Por isso voltei. Com ajuda, virei minha vida do avesso, voltei, renasci. E voltei com sede de inventar um novo corpo, não com faca, sangue e frankenstein. Com palavras. Um novo corpo a partir de uma nova história sobre o corpo.

A mitologia que temos em torno da vida vem dessa ideia de corpo que precisa ser uniforme e previsível, um corpo inventado para o trabalho lá no começo do capitalismo moderno, fixo, sem ciclos, dessacralizado. Dessacralizar o corpo é excluir a imaginação da ideia de saúde, com isso excluindo os reinos invisíveis do corpo, seus mistérios, sua conexão com os tempos da natureza e com a criação de outros mundos. O corpo deixa de ser bicho e se torna o funcionário de uma mente insegura, estressada, ansiosa.

Temos ideias de corpo e de vida colonizadas, por isso temos corpos colonizados, tomados por forças uniformizadoras, interessadas no controle e no capital, que classificam nossos corpos por sua utilidade ao trabalho produtivo, produzidor, acumulador, reprodutos, todos os dias, o tempo todo, sem pausa, sem ciclo, viva isso, seja isso, sinta-se incapaz por não se sentir bem com isso.

Se colonizam nossos corpos com palavras, seria possível, com palavras, descolonizar nossos corpos? Tomá-los de volta? Recuperar com versos o viço da pele, a festa dos olhos, a paixão por fazer algo? O poema nos ensina a morrer, sim, mas pode ele nos ensinar a viver? A ser corpo? A viver em queda livre?

Seria possível escrever um livro que me trouxesse de volta ao meu corpo? Seria possível apresentar esse livro como um feitiço? Como faziam os mitos, as lendas, os contos de fadas? Seria possível criar um conto de fadas pós-apocalíptico, uma costura de palavras mágicas para que outres pudessem tomar seus corpos de volta? Um experimento literário-alquímico?

Vem primeiro como cisma, uma cisma por palavras, uma cisma de que as palavras podem ser a chave das portas que fecham e abrem o nosso corpo. Uma cisma também pelo silêncio, pelo arrebatamento do silêncio, por sua sensualidade, um silêncio serpente escorrendo a curva entre as palavras. Não qualquer silêncio, não qualquer palavra. Calar-se não é sagrado. A palavra que uniformiza não é feitiço, é maldição, é sono, não sonho.

Na busca por compartilhar essa jornada, vivida a cada segundo como processo criativo, incorporação e transmigração da alma, é aqui que você me encontra, nessa aventura, me jogando e tentando aprender a permanecer em queda livre, a não me conter, a não me constranger, a me jogar de novo se for preciso, a viver o processo criativo como uma travessia no corpo, e te convidando a fazer o mesmo, a viver comigo o que escrevo e a escrever comigo nesse movimento, o 99% inspiração.


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